segunda-feira, 18 de abril de 2016

Prefiro morrer do que perder a vida (Chaves; 1977)

Estou citando ele, o bom e velho personagem órfão e quase sempre faminto. Chaves é um dos meus personagens favoritos da televisão. Apesar de desastrado, meio pateta e sempre irritar muito o pessoal da vila, ele é um garoto de bom coração. E eu admiro pessoas desse tipo. Bom, mas a escolha da frase como título deste texto não foi para tagarelar sobre a Turma do Chaves, tão pouco revelar a minha queda por homens de bom coração. Afinal, este espaço aqui serve para divulgar ciência. Então vamos ao ponto! Desde muito pequena, sempre achei esquisita essa frase do personagem, mas só na adolescência entendi a redundância que havia ali. Hoje, coloco aqui porque ela explica um fato muito importante na vida microscópica, pelo qual tenho fascínio absurdo: a apoptose. Na linguagem biológica, dizemos que a célula sofre uma série de modificações: o citoesqueleto sofre colapso, o envelope nuclear é desmontado, o DNA nuclear quebra-se em fragmentos formando corpúsculos apoptóticos e a superfície celular é alterada fazendo com que a célula seja fagocitada, tornando os componentes da célula disponíveis para serem “reciclados” pela célula que a ingeriu.
           De maneira mais geral, podemos definir apoptose como um tipo de morte celular programada, conhecido como suicídio celular. Isso porque nesse processo, células do nosso próprio organismo decidem morrer e fazem isso por um bem. A apoptose está envolvida em eventos chaves do desenvolvimento embrionário, controle de tumores e regulação da população de células do sistema imune. Uma célula contendo uma grande quantidade de danos no DNA, por exemplo, pode ser encaminhada para apoptose, tendo em vista os graves danos que o acúmulo de mutações podem causar em um organismo. É nesse contexto que a apoptose torna-se é um evento importante para evitar a ocorrência de câncer no organismo. A grosso modo*, se uma célula que possui uma quantidade muito grande de danos é morta, ela não pode multiplicar-se para formar um tumor potencialmente perigoso. Então, podemos considerar a apoptose como um evento benéfico de verificação contra células renegadas que de outro modo poderiam proliferar descontroladamente no organismo. Por outro lado, existe o fato também de que muitas doenças humanas são caracterizadas pela ocorrência de apoptose, como é o caso das doenças neurodegenerativas como o mal de Alzheimer e Parkinson. Então, como pode a apoptose, sendo um evento benéfico, ser responsável por causar doenças? O fato é que a apoptose normalmente ocorre numa taxa muito baixa, considerada basal no organismo. Assim, apoptoses excessivas podem causar um efeito adverso no organismo, estando dessa forma envolvido com a ocorrência de doenças.
Em procariotos, como em bactérias, direcionar uma célula contendo uma quantidade exacerbada de danos para a morte não faria sentido nenhum, já que esses organismos são compostos por uma única célula e, portanto, sua eliminação resultaria na eliminação do próprio organismo como um todo. Esses organismos, em vez disso, possuem um sistema de reparo de DNA, denominado SOS. Assim, quando a célula contém muitos erros, é ativado uma bateria de proteínas que inserem bases (mesmo que não pareadas corretamente) no filamento de DNA danificado, numa tentativa desesperada de recuperar o DNA. Eucariontes não possuem esse sistema de reparo e, ao invés disso, a célula contendo um alto nível de danos que não podem ser corrigidos é encaminhada para a morte celular por apoptose. E é assim que a frase “prefiro morrer do que perder a vida” se encaixa nesse contexto: no sentido de "sacrifício" da morte em troca do bem estar do organismo como um todo.




*Uso aqui o termo "grosso modo" porque sabe-se que para que uma célula com danos gere um tumor são necessários uma série de eventos intermediários como a iniciação, progressão e promoção.